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A voz pelas mãos de Ziza

A clareza dos pensamentos, a firmeza nos posicionamentos e a consciência de seu papel como artista fazem dessa paulistana de 31 anos uma voz ativa no universo do grafite e da representatividade negra na arte de rua. Ziza é parceira de Bieto no projeto “De volta à escola” e os dois compartilham muito mais do que sprays e paredes: a afinidade de ideias colocam esses dois artistas em constante troca sobre temas como feminismo, racismo, acesso à informação, construção do ser artista, técnicas e experiências de vida.

A partir de agora, leiam ouvindo a melodia suave e assertiva de Ziza:

A sua formação é bastante ampla: artista plástica, designer de moda e recentemente especialista em gestão pública. Como foi essa caminhada?

Eu gosto de me colocar como arte-educadora, pela minha pesquisa e atuação. Do mesmo jeito que eu recebi muitos conhecimentos que não estavam em livros pela oralidade, entendo que o movimento hip hop tem o objetivo de passar seu legado para outras pessoas, plantando uma semente para o futuro que vai nos substituir. Falando sobre o meu percurso, foi tudo bastante natural, da vida, uma coisa chamando a outra. Como grafiteira, sentia um incômodo com o jeito que os acadêmicos falavam pela gente, muitas vezes manipulando as falas para caber em seus TCCs (trabalho de conclusão de curso). Nunca éramos nós falando sobre o grafite em uma base acadêmica. Ao mesmo tempo, pouco se falava sobre o grafite nas políticas públicas e eu quis buscar nessa especialização mais conhecimentos na questão da gestão pública, conhecer os editais, a construção política com relação às artes urbanas e principalmente ao que chega nas pontas. Antes disso, já me movimentava em projetos de outras pessoas mas nunca como proponente.

Qual sua proposta nesse contexto?

Sempre lutei pela visibilidade das artistas negras e, observando os eventos que aconteciam, majoritariamente com homens convidados e algumas grafiteiras brancas, a minha angústia com essa falta de representativa da mulher negra nas artes só aumentava. Nesse cenário, vi como é importante a gente criar também os nossos próprios eventos, já que não era curadora nem organizadora de eventos, mas já tinha um olhar delicado sobre o assunto. Ao mesmo tempo, não queria que essa vontade de agregar e problematizar ficasse restrita somente a um grupo de grafiteiras negras, por isso criei o Mulheres Emergentes, que trabalha na contramão do estabelecido. Normalmente, as pontas tem que ir até o Centro para terem projeção e serem ouvidas. No caso do Mulheres Emergentes, levo as mulheres de vários territórios para as pontas da cidade, como aconteceu na Casa de Cultura de Brasilândia (Zona Norte de São Paulo), onde elas pintaram a fachada, fizemos uma roda de conversa… Assim consegui unir mulheres artistas com repertórios diferentes e de diversas técnicas dentro do grafite em um espaço antes não explorado por muitas delas.

Como você vê o movimento hip hop hoje?

Olhando a história do movimento no Brasil, acredito que a periferia demorou para sacar e se apropriar do hip hop fora de lá. Com o passar dos anos o grafite foi perdendo força e se desvinculando do hip hop. Hoje, o grafite está muito mais ligado ao decorativo, ao design, do que à problematização das questões sociais, da cidade, e da arte como processo de transformação, questionando os políticos etc. Agora é técnica, estilo, desenho bonito. Estamos precisando resgatar a essência do hip hop, reestruturar, entender e reinventar o movimento novamente.

O que falta para que os grafiteiros ou artistas do movimento hip hop tenham acesso aos recurso públicos?

Falta algo que é bem básico: o acesso à informação e a transparência de quem disponibiliza os recursos. Para conseguir algo, você tem que querer muito, ir atrás, ficar olhando todo dia o Diário Oficial ou, no caso dos recursos privados, conhecer alguém de agência ou de dentro da empresa. Isso acaba fazendo com que poucos cheguem. Capacidade, estilo, tudo isso a gente tem. Falta também que empresas, galerias, eventos de arte etc entendam o poder da representatividade – que é, no caso de mulheres negras, quase nula em alguns locais de arte – e expandam o acesso. Porque para mim fazer uma galeria para negros é super preocupante. Não quero ficar em uma bolha, quero acessar esse espaço que é de todos.

Em que medida a galeria seria importante para o seu trabalho?

Com o apoio de uma galeria eu consigo enxergar melhor uma projeção internacional. Penso nisso e lembro de duas viagens de intercâmbio que fiz: para Berlim (Alemanha), em 2011 – parceria entre Gangway, Ministério da Cultura, Fundo Nacional da Cultura e Goethe-Institut – e depois para Washington, D.C. (EUA), em 2012 – parceria entre o Centro Cultural Afro- americano Príncipe George e o Consulado do Brasil em Washington. Nestas duas ocasiões, pela primeira vez, me senti artista de verdade, protagonista. As pessoas queriam conversar, saber de mim e do meu trabalho e criaram um ambiente de troca mágico. Aqui no Brasil a gente é besta demais, o ego é maior do que o trabalho. Para ganhar respeito temos que ir para fora, infelizmente.

E como seu trabalho tem evoluído ao longo destes quase 15 anos de carreira?

Eu sempre fui amante da arte, sempre desenhei. Lembro de pegar os livros de receitas da minha mãe, aquela folha grossa, bonita, e riscava ali mesmo. Também fazia recortes e colava nas paredes do meu quarto. Posso dizer que sempre fui grafiteira. Mas foi em 2006 (aos 17 anos) que entrei mesmo para o universo do grafite, primeiramente observando amigos da escola grafitarem. Minha mãe e irmã não me apoiavam porque consideravam perigoso esse meu envolvimento com certas pessoas, as amizades, a rua. Mas a periferia tem para tudo e para todos: se quiser para o bem tem e para o mal tem também. E assim fui travando uma batalha diária. Fui demonstrando e elas foram entendendo que aquilo poderia ser algo promissor e não só curtição. Acho que muito da minha personalidade em me posicionar hoje foi estruturada ali: tive que contornar algumas barreiras, como por exemplo, a que faz com que um jovem da periferia fique preso a seu território. Bem nova eu já rodava São Paulo toda, conhecendo pessoas com outras ideias e visões de mundo, que me mostraram inclusive a arte-educação. Com isso, quebrei aquele sistema restritivo que é colocado para o jovem da periferia.

Com relação à temática, sempre trabalhei com a figura feminina negra, mas agora estou fazendo um trabalho mais abstrato, conceituando mais a minha trajetória e história, aliando o que acredito e o que deve ser diferente. Para isso, tenho pesquisado sobre tecidos e estampas africanas, algo que é construído como decorativo, mas que conta histórias importantes e ao mesmo tempo contribui para a construção do meu movimento em resgatar a nossa ancestralidade, problematizar e criar uma nova história. Isso vai ao encontro do afrofuturismo, ao revisitar e resgatar o passado e reconstruir a história a partir dele. Me sinto cada dia mais empoderada na questão negra.

Destaco também como uma mudança recente a sensibilidade no traço nas minhas obras, utilizando pincel filete, brincando com o claro e o escuro do contorno e até mesmo com a cor da pele. Eu posso ilustrar um negro com qualquer cor de pele, branca, azul, e ainda assim ele vai carregar certas características inconfundíveis. Eu gosto dessa reflexão e debate, ainda mais neste momento crucial para os negros. A questão das indumentárias, as joias que retrato nos desenhos, é algo muito rico historicamente para os povos africanos. É emblemático, por exemplo, que nenhuma das lojas que utilizam como referência as joias crioulas (consideradas símbolos de status social entre os escravos) existentes hoje no Brasil sejam administradas ou protagonizadas por negros. Há muitas coisa belas e significativas que a gente precisa conhecer e valorizar.

Além da pintura e do grafite, a que mais você se dedica?

Eu nasci, cresci, tenho meu ateliê e atuo no Jardim Pery Alto (Zona Norte de São Paulo). Continuo aqui muito mais porque não me considero somente uma artista, quero ser exemplo para as pessoas da minha comunidade atuando próxima a elas. Dou aula para crianças de 5 a 14 anos pelo Programa de Iniciação Artística (PIÁ), da Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo. Através do brincar e da cultura regional, trabalhamos o empoderamento dessas crianças negras das pontas. Para mim funciona também como uma terapia, eu me transformo, dou muita risada… As crianças são de verdade e com elas trabalho a troca diariamente. A arte tem o poder de se reencontrar com o passado e de passar uma mensagem para o futuro. As crianças e os jovens são com certeza os condutores disso.

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